Gaia, agricultura sintrópica e design inteligente: convergências e divergências

A proposta que trago hoje não é a de aprofundar as origens mitológicas e pagãs de Gaia, nem suas implicações teológicas e filosóficas, tampouco seu papel como fundamento do ambientalismo. Também não pretendo discutir a agricultura sintrópica no sentido estrito da produtividade, ou mesmo criticar aqueles que, com afeto, abraçam árvores. Meu objetivo é trilhar um caminho intermediário, explorando a essência da hipótese de Gaia, o que caracteriza a agricultura sintrópica, e, sobretudo, as razões que me levaram a aproximar esses dois conceitos. Mais importante ainda, busco demonstrar a relevância dessa discussão para o Design Inteligente (DI), investigando sua influência e importância.

O primeiro motivo para essa abordagem reside no ressurgimento da ideia de Gaia no meio acadêmico universitário, especialmente nas Humanidades Ambientais, um campo que busca integrar as ciências sociais à reflexão sobre a questão ambiental. Cito como exemplo Bruno Latour, um autor influente nesse meio, embora eu discorde de grande parte de suas proposições. É crucial avaliar criticamente as ideias que emergem nesse contexto.

Para compreendermos a teoria de Gaia, recorro à definição de James Lovelock e Lynn Margulis, que a concebem como um esquema planetário autorregulado pelos organismos vivos, que modulam sua própria existência. Esse fenômeno, operando sem planejamento ou antevidência, teria permitido a continuidade da vida nos últimos 3,8 bilhões de anos [sic], abrindo portas para a discussão sobre o Design Inteligente.

James Lovelock, um químico britânico notório por suas invenções, inclusive um aparato para medir os clorofluorcarbonetos (CFCs) na atmosfera, e Lynn Margulis, bióloga norte-americana, propuseram a hipótese de Gaia. Margulis, aliás, é conhecida pela teoria da endossimbiose, que explica a origem do DNA mitocondrial nas células eucarióticas. Essa teoria, comparada de forma lúdica ao jogo Pac-Man, sugere que uma célula ancestral faminta englobou outra, que não foi digerida e se tornou parte integrante da célula hospedeira. Da mesma forma, a teoria da endossimbiose explica como as células primitivas teriam evoluído.

Dando um salto para outro tema, apresento Ernst Götsch, suíço radicado no Brasil, considerado o pai da agricultura sintrópica. Götsch notabilizou-se por reflorestar e recuperar vastas áreas degradadas, implementando sistemas agroflorestais no sul da Bahia. Esses sistemas buscam recuperar a terra, tornando-a produtiva para alimentos, fibras e madeira, por meio de consórcios de diferentes espécies. O processo imita a sucessão natural, combinando culturas como alface em fases iniciais, seguidas por mandioca, milho e outras, até que o sistema se transforme em uma floresta diversificada.

A agricultura sintrópica se nutre da fonte gaiana. Lovelock, na década de 1960, já colaborava com a NASA na busca por vida em outros planetas, começando por Marte. Ao comparar as atmosferas de Marte e da Terra, percebeu diferenças significativas. Em Marte, o dióxido de carbono predominava (96%), enquanto na Terra o nitrogênio era o gás mais abundante (78%), seguido pelo oxigênio (21%), com apenas uma pequena fração de dióxido de carbono (0,03%). Esse insight levou Lovelock a propor que a atmosfera terrestre seria resultado da ação dos primeiros micro-organismos, que, ao evoluírem e realizarem quimiossíntese e fotossíntese, teriam produzido o oxigênio atmosférico.

Essa conclusão, embora polêmica, sugere que a atmosfera terrestre seria o resultado da ação dos primeiros micro-organismos. No entanto, essa visão contrasta com as explicações que atribuem a origem do oxigênio a processos puramente químicos. Lovelock e Margulis propuseram que, logo após o surgimento da vida, ela teria começado a controlar o ambiente planetário e sua homeostase. Essa tese implica que a vida, ao surgir, tornou-se capaz de controlar o ambiente que a sustenta, apelando para o conceito de homeostase, que, no contexto fisiológico humano, refere-se à manutenção da temperatura corporal constante.

A hipótese de Gaia, em sua versão mais radical, sugere que a biota da Terra criou as condições do seu ambiente e o regula, mantendo um estado confortável para os organismos. Essa visão, no entanto, parece exagerada. A Terra, por essa perspectiva, seria um superorganismo, capaz de se reproduzir e evoluir. Essa analogia, embora útil, pode levar a interpretações equivocadas.

Darwin, por sua vez, talvez questionasse essa teoria, que inverte a lógica da evolução das espécies. Na visão darwinista, o ambiente é o fundo, um meio estático ao qual as espécies se adaptam por meio de mutações e seleção natural. A teoria de Gaia, ao contrário, sugere que as espécies criam o ambiente para se beneficiarem.

Após a hipótese inicial, Lovelock apresentou explicações que revelam uma teleologia implícita, o que gerou críticas, como a de Richard Dawkins. A ideia de que a Terra funciona de forma autorregulada e que o ser humano perturba esse equilíbrio, embora atraente, carece de evidências científicas robustas.

Em obras posteriores, Lovelock chegou a afirmar que Gaia é todo o planeta celebrando uma cerimônia sagrada, e que os seres humanos são o olho da Terra, um sistema que evoluiu e teria criado inteligência para se observar. Essas afirmações, que remetem a Carl Sagan, cuja esposa foi Lynn Margulis, revelam uma visão metafísica e religiosa.

Para compreendermos melhor essa questão, podemos recorrer à teoria de sistemas, que organiza os seres vivos em níveis de complexidade crescente: átomos, moléculas, células, tecidos, organismos, populações, comunidades, ecossistemas, biomas e biosfera. A teoria de sistemas postula que o todo é sempre mais complexo e possui características que não pertencem à soma das partes. A evolução darwiniana, por sua vez, foca-se nos organismos e suas populações, sem explicar como a evolução de uma espécie pode gerar propriedades de ciclo bioquímico ou de autorregulação em um ecossistema.

A consciência humana, por exemplo, não pode ser explicada pela soma dos neurônios. Trata-se de um princípio emergente. Lovelock, ao reconhecer a existência de princípios emergentes, admitiu a dificuldade em explicar os mecanismos que os originam. A seleção natural, por sua vez, não atua para o bem comum, mas para o bem da espécie.

Artigos recentes, datados de 2022, demonstram que a comunidade científica continua a debater essas questões, buscando entender como processos em nível da biosfera e dos ecossistemas podem ser explicados pelas partes que os compõem. A brincadeira “Survival of the systems” reflete essa busca por uma nova abordagem que considere as propriedades irredutíveis dos sistemas sociais e ecossistemas.

Ernst Götsch, com sua agricultura sintrópica, oferece um exemplo prático dessa busca. Seus sistemas agroflorestais funcionam, mas a explicação que ele oferece para seu funcionamento apela para noções de Gaia e para uma teleologia questionável. Götsch fala da “inteligência da floresta” e da função desempenhada pelas plantas por prazer interno e amor incondicional. Ele afirma que não há competição entre as plantas e os outros seres, e que os humanos são parte de um sistema inteligente, um macro-organismo.

Essas ideias, embora inspiradoras, carecem de base científica. Montanhas, rios, seres humanos e outros seres não humanos não possuem agência, ou seja, a capacidade de se projetar para o futuro, sonhar, ter desejos e fazer escolhas. Animais e plantas agem por instinto. Se a floresta fosse inteligente, veríamos cangurus na Austrália ponderando sobre suas escolhas alimentares.

Essas questões remetem à complexidade irredutível, conceito explorado por Michael Denton, biólogo sênior do Discovery Institute. Denton argumenta que a adaptação deve existir tanto no ambiente quanto no organismo. O ambiente, portanto, já estava pronto para a vida, incluindo a vida humana.

Denton questiona como poderia haver vida terrestre sem a prévia adequação ambiental e o ajuste fino do ciclo hidrológico, as propriedades térmicas da água, a visão de alta equidade e a fotossíntese. Ele conclui que o planeta foi projetado para comportar a vida humana.

Afirmar que o ajuste no sistema biota-atmosfera ou na sucessão vegetal em agroecossistemas se dá por conta da ação autorreguladora dos próprios organismos é assumir uma posição teleológica que leva a duas conclusões: ou a biota e os componentes abióticos possuem agência, ou um agente externo programou organismos e propriedades físicas e químicas da matéria.

Em suma, a agência existe, mas sua origem é externa aos organismos, à energia e à matéria. A questão que se coloca é: Darwin, Gaia ou Design Inteligente?

(Rodrigo Penna-Firme é professor do Departamento de Geografia e Meio Ambiente da PUC Rio; PhD em Antropologia pela Indiana University (EUA), biólogo, mestre em Ciências Ambientais e Florestais)

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